Dando pitacos!

Porque todo mundo tem algo a dizer sobre tudo. Só não somos convidados sempre...
E a estrela Intrometida existe mesmo!

domingo, 16 de fevereiro de 2014

O racismo não verbal de cada dia...

É sempre assim: "não sou racista, mas..." ou "não sou racista! Eu tenho até amigos negros!..." e também: "é claro que deixaria minha filha namorar um negro, claro!"
 
Não parece, amiguinho, mas você está sendo racista sim.
 
No Brasil rola um fenômeno engraçado: é um país enorrrrrme, gigante, e recebemos a mistura de todas as partes do mundo, fazendo com que o resultado seja qualquer coisa, mas sempre surpreendente. Não é homogêneo, cada um aqui é único mesmo. Então, perto de todo o resto do mundo, nós muitas vezes não percebemos isso, achamos que é fácil fazer parte de um grupo, gerando assim algumas pequenas incoerências. Apesar disso, muitas vezes temos a necessidade de fazer A definição. Aquela que a gente abraça, que se conecta, que se aceita. Logo, em uma discussão sobre "preto-branco", sempre me coloquei como negra, desde que passei a me entender por gente.


Ainda assim, eu mesma já fui chamada de "moreninha", "bombom" (odeio esse!), "índia", e "ô neguinhaaaaaaa..." (com uma voz fofa - uma prima minha, quando era bem pequena, me chamava assim. Me sufocava de amor, tipo a "Felícia" do "Tiny Toons", rs...). Mas negra, NEGRA, nunca. Nunca entendi o critério. Não sei se é por causa do cabelo, o nariz, a boca. Não sei mesmo. Uma vez, viajei para Buenos Aires. Em 1 semana por lá, se vi 5 negros, contando comigo, foi muito. Um dia, conversando com um funcionário do hotel, ele tentou descrever sua esposa. Não usou nenhuma palavra parecida como "negra". Disse que a cor dela era parecida com a minha. E só. Achei curioso. 
 
Um ano depois, viajei para Lisboa. Ainda no aeroporto, fiquei mais de 1 hora na longa fila pra imigração: vários voos chegaram juntos, e muitos com conexão. Pacientemente, fiquei esperando. Reparei que muitas pessoas vinham de outros países lusófonos e francófonos. Alguns estavam vestindo trajes especiais, mas não saberia dizer de onde eram exatamente. Eram negros, em sua grande maioria, homens e mulheres. Bom, como a fila não andava (eram poucos funcionários nos balcões de atendimento), essas pessoas foram, educadamente, pedir para passar na frente daqueles que estavam na fila. Voo com conexão é uma bosta. Estava tudo atrasado (viu classe mérdia? Aeroporto sempre é caótico!), tava todo mundo na mesma merda... Bom, eles resolveram pedir a um grupo de brasileiros, que negaram na hora. Quando os brasileiros viram o grupo ir embora, começou o blábláblá, que me deu nojo. O grupo de brasileiros estava indo para França, o voo não deveria estar muito atrasado. Muitos se gabavam de estarem seguindo as regras. "Nãaaao. Não podeeeeee. Onde já se viu?". Riam muito, e se acharam o máximo. Minutos depois, uma outra brasileira percebeu que poderia perder o seu voo para Paris, e pediu ao mesmo grupo para passar na fila. Foi atendida prontamente, foi atendida rapidamente, e ela pôde sair saltitante para o setor de embarque. Minutos depois, um funcionário gritou para os presentes na fila: "Não é para dar lugar na fila!" (Não, eles não usaram a palavra "bicha", se é o que você quer saber), e formou uma nova fila, só com pessoas que estavam perto de perderem seus voos. Nessa hora eu já estava saindo do setor, para pegar minhas bagagens e seguir meu rumo.  
 
O grande problema pra mim, nesse caso de Lisboa, não foram as barbaridades que eles falavam entre si. Isso eu já esperava. O lance foi a linguagem não-verbal. Eu vi, claramente, "aquele olhar". Aquele olhar de quem se acha superior, de quem se acha o "senhor do destino". Provavelmente o olhar não seria o mesmo dado para um grupo de norte-americanos, se a situação fosse a mesma. Como não foi para a brasileira. O olhar lançado chegou a me fazer curvar o corpo, de tão pesado. O grupo parecia que dava um esporro naquelas pessoas, "como assim!??? Não fale comigo desse jeito, abaixe esse tom de voz!" Quando vi que a outra brasileira fazendo o mesmo pedido e sendo atendida, eu fiquei com vontade de dar um escândalo (olha o lado "professora" aí... - esse lado apareceu em outros momentos da minha temporada em Portugal, mas aprendi ali a não me meter tanto no problemas dos outros, que é o contrário do que temos que fazer no Brasil.), de perguntar: "Porra, porque o outro grupo não pôde passar? Se deixar, estão indo para o mesmo lugar que a brasileira que vocês deixaram passar! Que sacanagem!"
 
Aí entra o ponto. No meu diálogo imaginário, eu poderia levantar a seguinte bola: "Não deixaram porque vocês, brancos brasileiros, são superiores?" E a reposta seria parecida com algumas frases que abrem este post, certamente. E eu ficaria com mais raiva ainda. Não estou discutindo aqui as regras locais. Não é pra passar, não é pra passar mesmo. Ninguém. Mas, passou. Pelo mesmo grupo. Fiquei pensando se fosse comigo. Olhei pra mim mesma: eu vestia um jeans, all star nos pés, camisa rosa, casaco rosa pink, aparelho nos dentes, uma trança no cabelo amassado, cara de sono (porra, 10 horas num avião é foda...), viajando sozinha. Como eu seria julgada e classificada? Bombom? Moreninha? Eles "me deixariam" passar? Seria muita ousadia minha pedir?
 
Pensei naquela hora: não importava o quanto eu tinha de dinheiro em mãos. Se eu já tinha feito curso superior, se eu era especialista em arte e filosofia. Se eu era funcionária pública. Se sabia falar inglês o suficiente para me virar sozinha. Se já tinha estudado piano. Não importa nada disso. Os primeiros que pediram para passar a frente estavam vestindo roupas que pareciam ser muito específicas de alguma cultura. E o olhar dado pelos brasileiros ao grupo não foi nada amigável, mesmo assim.
 
O que importa é o primeiro contato visual. O que eu li neles foi: "VOCÊ não deve estar aqui. Fica no teu lugar." E pensando nisso agora, eu fico imaginando como eu seria vista em qualquer shopping onde marcaram ou rolou algum rolezinho. Ou se eu tivesse que morar em alguns lugares do Brasil, fora do sudeste.
 
O que mais me revolta nisso tudo é a falta de coragem de muitos para admitir. O Brasil é racista sim. A diferença é que ninguém fala. Vivemos exaltando nossas diversas raízes culturais por aí, mas na primeira oportunidade a máscara cai. E na maioria das vezes, é na linguagem não-verbal. Como no caso do jogador de futebol Tinga, que outro dia mesmo foi insultado no Peru. Ninguém gritou "preto nojento", mas fazer sons e imitar macacos têm o mesmo efeito. Curiosamente, Deco, ex jogador, não achou que o caso foi racista. Cito o Deco aqui não porque ele é meio português, mas sim porque sua postura foi a mesma de muitos brasileiros quando aparece alguma situação de racismo. Dizem para si e para os outros: "não é bem assim", "não foi isso que ele quis dizer", "não deve levar tão a sério". 
 
É nessa brincadeira de "não levar tão a sério" que vamos naturalizando muita coisa que já deveríamos ter superado. ¬¬
 
Beijocas e pipocas.
 
obs: Não, não rolou nenhum caso de racismo comigo, ok? Curiosamente, em Lisboa, tinha gente jurando de pé junto que eu era indiana. Vai entender...  
 
 
 
            



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